terça-feira, 3 de janeiro de 2012

ainda sobre "As Vinhas da Ira"

Catarina Bernardo • 12º C

Daniel Xavier • 12º C

Rui Viegas • 12º C

Sílvia Cavaleiro • 12º C

Ana Paulino • 12º F

Fábio Caetano • 12º F

Graça Gonçalves • 12º F

Sílvia Couto • 12º F

sobre "As Vinhas da Ira"

A Cinemateca Júnior proporciona o visionamento de grandes filmes aos jovens, dando-lhes uma visão mais alargada da importância do cinema, que não se resume aos habituais filmes comerciais da indústria americana. É caso do filme “ As Vinhas da Ira” do realizador John Ford, vencedor de dois Óscares.

Este filme é baseado no clássico da literatura, com o mesmo nome, de John Steinbeck de 1939, sendo adaptado para o cinema em 1940 pelo mestre John Ford, surgindo assim um dos grandes clássicos do cinema.

Esta história passa-se durante a Grande Depressão (1929 e década de 30), quando em 1929 se dá o Crash da Bolsa de Nova Iorque em que as acções da bolsa caiem drasticamente, trazendo consequências catastróficas a nível social, económico e financeiro. Uma das maiores consequências foi o aumento do desemprego, que levou muitas famílias, nomeadamente as camponesas, à ruína e à miséria.

Neste filme acompanhamos uma dessas famílias que tudo perdeu, os Joad. Temos como personagem principal o ex-presidiário Tom Joad, interpretado pelo esplêndido Henry Fonda, que tem aqui um dos desempenhos da sua vida (não tendo no entanto recebido o desejado e merecido prémio da Academia). Quando sai da prisão, Tom regressa a casa e descobre que a sua família pretende ir para a Califórnia, pois é neste estado dos EUA que são procurados homens para a apanha da fruta. A família parte em condições miseráveis: um carro para 12 pessoas cheio de bagagem, sendo em cima desta que grande parte da família viaja; o dinheiro não abunda assim como a comida que tanta falta faz à irmã de Tom, Rosasharn (Dorris Bowdon) que se encontra grávida, e aos avós (Charles Grapewin e Zeffie Tilbury). É com a morte dos avós durante a viagem que podemos ver a dureza desta e percebemos que a busca por uma vida melhor não vai ser assim tão fácil para esta família lutadora. Ao chegarem à Califórnia, apercebem-se que não são os únicos a procurar emprego e, apesar de todos os Joad terem conseguido arranjar emprego como apanhadores de fruta, os salários e as condições de vida eram deploráveis. Conseguimos então, através da lente de John Ford, ver o desespero destas pessoas que fazem de tudo para sobreviver e sustentar as suas famílias. É ainda visível a tristeza e a tensão nos rostos dos actores, que nos transportam para a situação dos seus personagens.

John Ford conseguiu com este filme o Óscar de melhor realizador e esse feito deve-se à maneira como este filme não deixa ninguém indiferente. Além do realizador, a actriz Jane Darwell recebeu também um Óscar de melhor actriz secundária, pelo conforto que causa aos espectadores com a sua interpretação da esperançosa mãe de Tom.

A tensão, o desespero e a miséria estão presentes neste filme que nos transporta para uma época depressiva dos EUA e que nos faz comparar a crise de 29 com a crise atual, e vemos que afinal podíamos estar bem pior!

Cláudia Malta e Irina Ludovico • 12º B

terça-feira, 15 de novembro de 2011

As Vinhas da Ira, de John Ford - a partir de John Steinbeck

Realização: John Ford / Argumento: Nunnally Johnson, baseado no romance homónimo de John Steinbeck / Fotografia: Gregg Toland / Música: Alfred Newman, com canções de Dan Borzage / Montagem: Robert Simpson / Cenários: Thomas Little / Direcção Artística: Richard Day e Mark Lee Kirk / Interpretação: Henry Fonda (Tom Joad), Jane Darwell (a mãe), Russell Simpson (o pai), John Carradine (Casey), Charles Grapewin (o avô), Zeffie Tilbury (a avó)(a avó), Frank Sully (Noah), Dorris Bowdon (Rosasharn), O. Z. Whitehead (Al), John Qualen (Muley), Eddie Quillan (Connie), Ward Bond (o polícia), Frank Dorien (Tio John), Darryl Hiekmann (Winfields), Shirley Mills (Ruth Joad), Grant Mitchell (o guarda), etc.

Produção: 20th Century Fox / Produtor: Darryl F. Zanuck e Nunnally Johnson / Cópia: da CINEMATECA PORTUGUESA-MUSEU DO CINEMA, 35mm, preto e branco, com legendas em português / Duração: 129 minutos / Estreia Mundial: EUA, 15 de Março de 1940 / Inédito comercialmente em Portugal (exibido, pela primeira vez, em sessão particular na Embaixada dos Estados Unidos em Lisboa, a 10 de Janeiro de 1973, e em sessão pública, no Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian, a 4 de Outubro de 1979).

Num artigo publicado em 1976 na Revista Colóquio-Letras, sob o título “Literatura e Política - Possibilidades e Limites”, o autor (Walter Jens) conta a história dum emigrante russo (antigo cossaco) que, em 1926, após ter visto na América O Couraçado Potemkine de Eisenstein, se foi entregar às autoridades, exigindo a sua própria condenação, pois descobrira, ao ver o filme, que “era um criminoso” porque o seu regimento participara no massacre de Odessa.

Como escreve Jens “a célebre sequência das escadarias abrira os olhos àquele homem. Agora, de repente, ele sabia o que, na realidade, se tinha passado em Odessa; nesse momento em que - esclarecido por uma obra de arte em cuja montagem a realidade era retratada - subitamente começava a compreender a dupla perspectiva dum acontecimento que há muito caíra no olvido” (os sucessos narrados no filme haviam tido lugar vinte e um anos antes, isto é, em 1905).

Não interessa saber se esta história satisfaria ou não Eisenstein. O que é certo é que ela perfaz a aspiração mais profunda de quantos tentam fazer obras de arte interventoras: produzir na consciência individual (e na consciência social) uma modificação que altere profundamente uma visão do mundo. Jens sustenta - e penso que com razão - que tal aspiração é ilusória e que, “aqui e agora”, nem o filme, “nem as artes no seu conjunto”, “mudaram coisa nenhuma”, a esse plano. É uma vexata quaestio que se reacendeu, quando da estreia de As Vinhas da Ira (nas acesas polémicas que opuseram os detractores do filme aos seus defensores) e que se pode reacender a cada nova visão. Porque poucos filmes terão o impacto moral e social deste, porque poucos filmes serão tão imediatamente actuantes ao nível da modificação acima referida. Dificilmente, o mais insensível dos espectadores ficará “frio” perante sequências como a da partida de Tom e o seu “discurso”: “I’ll be there” ou o não menos famoso “discurso” da mãe: “We’re the people”.


O mais estranho é que isto (ou seja, essa contagiante comunicação e revolta) tenha acontecido com uma obra de John Ford, que pode ser acusado de tudo menos de revolucionário. O que o realismo socialista e o neo-realismo, em obediência a postulados teóricos, tanto procuraram e só muito raramente conseguiram (a intervenção social e política através duma obra de arte) aconteceu no filme de Ford, que estava longe de seguir tais postulados e nunca perfilhou doutrinas de engagement.

O “milagre” das Vinhas da Ira, como o de Young Mr. Lincoln do mesmo Ford e com o mesmo Fonda, no ano anterior, tem a explicação numa convicção que não é “colada” por imposições propagandísticas, mas provém duma certeza de nível muito mais profundo. Ford não “cantou” Lincoln ou a família Joad para servir os interesses duma política (embora seja outra questão saber se efectivamente as serviu) mas porque moralmente o seu credo se identificava totalmente com as ideias expressas nessas duas obras. São filmes sem dúvidas nem manhas - actos de fé e esperança - filmes de um crente que nenhuma dúvida, oportunismo ou servilismo, atravessa. Realizador e “mensagem” identificam-se plenamente e, por isso, o olhar é tão límpido, a beleza tamanha e a força tão pura. Várias décadas depois, As Vinhas da Ira (o filme, muito mais que o livro de Steinbeck, que já se lê com outra distância) continua a manter a mesma eficácia. Porque é um filme de inabaláveis certezas e um filme de um grande artista. Quando as duas coisas se reúnem, necessariamente tudo está certo.

Sabemos que não se tentou impingir gato por lebre: os pequenos camponeses do filme não são (como no neo-realismo italiano) reais pequeno-camponeses, mas actores profissionais tão célebres como Fonda, Darwell ou Carradine; não é por acaso que o responsável pelo único trabalho onde os Joad são bem tratados, tanto lembra fisicamente o Presidente Roosevelt (imagem paternal, New Deal e new look); não é irrelevante que o filme comece com um homem sozinho em contra-luz, já que assim ficam bem sublinhadas a revolta e injustiça individuais, a que Fonda deu, no citado “discurso”, a força da primeira pessoa do singular; não é gratuito que nos seja proposta a identificação com uma família exemplar e que os “maus” sejam tão claramente demarcados dos “bons”.

Mas nada disto atinge o cerne da obra, exactamente porque nada disto é escamoteado e porque esses são os valores e as ideias em que John Ford acredita e que, por um singular encontro histórico, se reuniram em 1940 aos valores e aos ideais da sociedade e do país em que viveu. É por isso que Darwell, Fonda e Carradine podem convencer que “eles são o povo”, é por isso que o movimento de esperança que o filme implica se sobrepõe a quaisquer outras considerações sobre realidades menos amáveis, ou de leitura menos transparente.

Como tenho escrito a propósito de outros filmes de Ford, talvez seja preciso recuar à pintura holandesa do Séc. XVII para encontrar uma tão funda adequação entre os valores duma sociedade e a representação dessa sociedade, entre o olhar dum artista que a simboliza e o olhar dos homens e mulheres que, simbolizando-a também, nos foram retratados.

A imensa beleza deste filme conduzir-nos-ia a análises quase inesgotáveis, desde a fotografia (não resisto a citar a entrada de Fonda em casa, com a iluminação à luz da vela) aos actores. Mas este filme convida mais ao silêncio que à prolixidade. Daí que me limite a apontar, entre tantos momentos de antologia, um só que resume tudo quanto até aqui disse: o plano da morte do avô, quando este agarra com a mão direita a terra do solo em que tinha nascido, a pousa sobre o peito, muito lentamente, e, depois, deixa cair devagar o braço, morrendo em total consonância e em total identificação, na morte mais panteísta da história do cinema.

Pode discutir-se As Vinha da Ira - segundo filme de Ford a obter o oscar da melhor realização - é ou não o seu melhor filme. Mas podemos estar seguros de que é certamente um dos pontos mais altos dela. Filme só visto em Portugal a partir da década de 70, a expectativa com que foi aguardado jamais foi frustrada.

João Bénard da Costa

terça-feira, 24 de maio de 2011

As Férias do Senhor Hulot, de Jacques Tati

Realização: Jacques Tati / Argumento: Jacques Tati, Henri Marquet / Fotografia: J. Mercanton, J. Mouselle / Direcção Artística: Henri Schmidtt / Música: Alain Romans / Intérpretes: Jaques Tati (Mr. Hulot), Nathalie Pascaud (Martine), Michele Rolla (tia), Valentine Camay (criada velha), Louis Perrault (barqueiro), André Dubois (Coronel), Lucien Frégis (dono do Hotel), Raymond Carl (criado).

Produção: Cady Films - Discina / Cópia: da Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema, em 35mm, preto e branco, versão original legendada em português / Duração: 86 minutos / Estreia Mundial: Paris, 25 de Fevereiro de 1953 / Estreia em Portugal: Tivoli, em 22 de Fevereiro de 1954.

Numa das mais interessantes (e ditirâmbicas) análises sobre esta obra prima de Jacques Tati, incluída no “International Dictionary of Films ans Filmakers”, o autor, Dave Kehr, chama a Les Vacances de Monsieur Hulot o Sacre du Printemps do cinema, e aponta-o como “um dos filmes mais radicais jamais feitos”. E acrescenta que “sem Les Vacances não teria havido Jean-Luc Godard, nem Jean-Marie Straub, nem Marguerite Duras - nem cinema moderno”. O ponto de partida para esta análise tem a ver com a forma como Tati encena o seu filme fazendo, como Kehr sugere, tábua rasa das convenções dominantes da linguagem cinematográfica, como se Griffith nunca tivesse existido.
Há bastante pertinência nas afirmações de Kehr que, no fim de contas se poderiam aplicar a toda a obra de Tati, e, deste ponto de vista, as suas curtas metragens, Soigne ton Gauche, L' École des Facteurs e Cours du Soir, são particularmente sugestivas com a sua construção que lembra os primitivos burlescos, menos os americanos do que os europeus que se fizeram antes da Primeira Grande Guerra. Mesmo nas longas metragens, o que distingue Tati dos restantes realizadores do seu tempo, cómicos ou não, e o que provoca no espectador um efeito de estranheza, é a radical diferença da “narrativa” dos seus filmes em comparação com os outros seus contemporâneos. Trata-se não só de uma recusa de efeitos fortes nos argumentos, como também de qualquer efeito de manipulação através da montagem. As coisas são o que são e como estão no plano sem mais nem menos. O exemplo que Kehr dá em Les Vacances pode ser encontrado também em qualquer os outros filmes (a praça e o jantar em Playtime, por exemplo). Trata-se da sequência da estação de comboios, ao começo, quando os veraneantes estão de abalada para férias. Um engano do anunciante faz as pessoas correrem de um apeadeiro para o outro. Toda a cena é mostrada de um único ângulo, numa ligeira plongée por cima da estação. As pessoas passam pelas passagens subterrâneas num confuso vai-vem sem que a cena tenha qualquer corte para sublinhar qualquer comportamento ou incidente. É uma posição neutra, que não impõe nenhum olhar particular, a não ser o da câmara nesse mesmo momento, da mesma forma como os primitivos cineastas captavam as imagens. O humor, neste caso, nasce do movimento interno do plano, e não do pormenor pitoresco, do insert significativo, que Griffith e outros, introduziram para dar uma maior tensão dramática (os grandes planos cortando os de conjunto em The Birth of a Nation, por exemplo). É a mesma regra que seguem os autores citados por Kehr, mas também Manoel de Oliveira nas suas obras mais radicais em questão de linguagem, Amor de Perdição, Benilde e Francisca.

Esta maneira de filmar é constante em toda a obra de Tati, mas em Les Vacances de Monsieur Hulot ela adquire uma função narrativa mais significativa do que em qualquer outro, de certo modo porque estabelece as bases do seu trabalho futuro, em particular com o tratamento do personagem. Porque se “o estilo faz o homem”, faz também a personagem. Hulot distingue-se de todas as outras figuras cómicas da história do cinema por um certo “apagamento”. É, no fim de contas, a montagem que “impõe” este ou aquele personagem ao “impor” um olhar determinado sobre ele. Ao evitar esse método, ao utilizar quase sempre o plano de conjunto para mostrar os gags e as situações, Tati “apaga” o personagem, e embora a atenção do espectador se concentre nele há mil e um pormenores à volta que constantemente apelam aos nossos sentidos. Repare-se nas sequências da praia (o velho casal que passa e cujo gag é uma situação corriqueira: deitar fora as conchas), e principalmente a belíssima sequência do baile de máscaras com Hulot reduzido apenas a um dos vários participantes. Mesmo quando está só no plano, raramente há um corte para por em destaque este ou aquele gesto (exemplar a cena da pintura do barco com a lata de tinta levada pelas ondas de um lado para o outro). Este “esbatimento”, esta redução a um vulto na paisagem terá como consequência lógica o progressivo “desaparecimento” de Hulot: em Playtime ele não é já mais do que um entre muitos outros peões. Mas isto resulta também desse olhar cada vez mais neutro e distante, onde se quis ver uma certa frieza e “avareza” narrativa, mas que resulta dessa opção radical para o seu tempo de não querer impor um olhar estranho ao espectador, de respeito pela sua inteligência e sensibilidade. Tati retira dos planos dos seus filmes tudo o que é supérfluo. A sua câmara abre-se, com uma janela sobre uma paisagem determinada, povoada pelos mais variados tipos que têm em comum um ar mais ou menos vulgar. O humor nasce de algo que se desloca nessa harmonia, por vezes de forma imperceptível, aqueles gestos quotidianos que à força de os repetirmos perderam o sentido e não damos por eles. Gestos e sons. Se a modernidade do cinema de Tati passa pelo seu aspecto “primitivo”, outro sinal dessa modernidade é a forma como o som é trabalhado, perturba o conjunto ou nele se integra. Quer os ruídos, quer os diálogos se destacam da mesma forma que os referidos gestos: banais os primeiros, mas adquirindo um sentido novo (o barulho do vento que abala os rituais dos veraneantes quando a porta da sala de espera se abre), e os segundos limitados ao essencial, e, como em qualquer conversa, feitos de comentários perdidos, apanhando-se um ou outro fragmento. Se o cinema moderno nasceu de muitas experiências e filmes, Les Vacances de Monsieur Hulot, de Tati e Viaggio in Italia, de Rossellini, são as obras que definitivamente lançam os seus alicerces.

Manuel Cintra Ferreira
Folha da Cinemateca Portuguesa

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

As Duas Feras, de Howard Hawks

Realização: Howard Hawks / Argumento: Dudley Nichols, Hagar Wilde e (não creditado) Howard Hawks, baseado numa história original de Hagar Wilde / Fotografia: Russell Metty / Direcção Artística: Van Nest Polglase e Perry Ferguson / Décors: Darrell Silvera / Guarda-Roupa: Howard Greer / Música: Roy Webb / Montagem: George Hively / Interpretação: Cary Grant (Prof. David Huxley), KATHARINE HEPBURN (Susan Vance), Charles Ruggles (Major Applegate), May Robson (Tia Elisabeth), Barry Fitzgerald (Gogarty), Walter Catlett (Slocum), Fritz Feld (Dr. Lehmann, o psicanalista), George Irving (Peabody), Leona Roberts (criada, a mulher do jardineiro), Tala Birrell (Mrs. Lehmann), Virginia Walker (Alice Swallow, a secretária), etc.

Produção: Howard Hawks para a RKO RADIO PICTURES / Cópia: da CINEMATECA PORTUGUESA-MUSEU DO CINEMA, 35mm, preto e branco, legendado em português / Duração: 101 minutos / Estreia Mundial: Los Angeles, 18 de Fevereiro de 1938 / Estreia em Portugal: Cinema Tivoli, 28 de Março de 1938 / Reposição comercial a 9 de Dezembro de 1966 no Cinema Condes.


E hoje vamos tratar de dinossauros. Dinossauros? Mais outro Parque Jurássico?, pensarão alguns dos nossos jovens cinéfilos. Não. Por enquanto não.

Os dinossauros neste filme estão limitados a um exemplar, e mesmo esse reduzido a um…esqueleto, que faz parte do Museu de História Natural, ao qual falta um osso que o professor Huxley procura descobrir. Aparentemente o dinossauro está no centro do filme, mas a história é outra. Aliás o título até não tem nada a ver com ele. É de outra bicharada que trata.

Como já gastámos várias linhas em prosa que talvez não vos faça muito sentido, convém já explicar que o filme que vamos ver, Duas Feras, é uma das comédias mais divertidas de toda a história do cinema (que já tem mais de um século de existência), e foi realizado por Howard Hawks já lá vão 71 anos e não precisa de “liftings” nem maquilhagem pois não tem ainda uma ruga.

As Duas Feras do título português, assim como o “Baby” do Bringing Up Baby original, têm a ver com um par de leopardos que andam à solta pelo filme. O primeiro, domesticado, vem pela trela conduzido por Katherine Hepburn (é uma “fera” melómana, pois se está temperamental basta uma canção, a célebre “I Can’t Give You Anything But Love”, para ficar mansa como um bebé). O segundo aparece lá mais para o fim, em estado natural, isto é, “selvagem”. Como são idênticos, calculam as confusões que vão provocar em quem os encontra, uns confundindo o amestrado com o selvagem e vice-versa.

Mas que fazem estes bichos (a que se junta um irreverente cachorro) por aqui? Tudo começou muito antes quando o professor Huxley (Cary Grant, num dos melhores papéis cómicos da sua carreira) encontra, num jantar com um possível mecenas para o Museu, a jovem Susan (Katherine Hepburn) herdeira rica e solteira que resolve deitar a “mão” ao professor, mesmo estragando-lhe o casamento que estava planeado para o dia seguinte.

As relações entre o par desenvolvem-se numa série de confusões e situações caricatas de que o professor é sempre a vítima. Entra em cena o cachorro, propriedade da tia de Susan, que comete o “crime” de roubar o osso fóssil (o único que faltava no esqueleto do dinossauro) e ir enterrá-lo em lugar desconhecido. O que se segue não tem descrição possível, sendo todo o filme uma série de “caçadas” cruzadas, os caçadores atrás dos leopardos, os leopardos atrás dos caçadores, o professor em busca do osso e, Susan atrás do professor.

Duas Feras é considerado, com toda a justiça, como a obra mais perfeita de um género que recebeu em Hollywood a designação de “screwball comedy” que significa “comédia desaparafusada” ou “comédia maluca”, género em que Howard Hawks foi mestre. Fez ainda, entre outros, Bola de Fogo, com um argumento parecido (também uma mulher desembaraçada à “caça” de um homem tímido) e A Culpa Foi do Macaco.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

O Circo, de Charlie Chaplin


Realização, Argumento, Montagem e Música: (esta última, composta e gravada em 1968): Charles Chaplin / Fotografia: Roland Totheroh / Assistente de realização: Harry Crocker / Assistente de Fotografia: Jack Wilson e Mark Marlatt / Direcção Artística e Cenários: Charles D. Hall / Assistente para a versão musicada: Eric Rogers / Direcção Musical: Eric James / Canção (composta para a versão musicada): “Swing, Little Girl”, música, letra e interpretação de Charles Chaplin / Interpretação: Charles Chaplin (O Vagabundo), Merna Kennedy (a Amazona), Harry Crocker (Rex, o equilibrista), Allan Garcia (o dono do circo), Henry Bergman (o velho palhaço), Stanley Sanford (o chefe da “troupe”), George Davis (o mágico), Betty Morrisey (a Mulher que desaparece), John Rand (um palhaço), Armand Triller (outro palhaço), Steve Murphy (o carteirista), Bill Knight (o polícia), Jack Pierce (o Homem que mexe as cordas), etc.

Produção: Charles Chaplin para a UNITED ARTISTS / Início das Filmagens: 11 de Janeiro de 1926 / Interrupção da produção: 5 de Dezembro de 1926 a 3 de Setembro de 1927 / Fim das Filmagens: 19 de Novembro de 1927 / Estreia Mundial: Strand Theatre, Nova Iorque, a 6 de Janeiro de 1928 / Estreia em Portugal: Cinema Tivoli, a 14 de Janeiro de 1929 / Metragem Original: 1980 metros / Metragem da versão musicada: 1960 metros / Duração: 70 minutos / Estreia da versão musicada: 1968 / Estreia da versão musicada em Portugal: Cinema Roma, 18 de Dezembro de 1969.


Se perguntarem a quem viu todos os filmes de Charlot qual é o melhor, as respostas variam, mas circunscrevem-se geralmente a três: «A Quimera do Ouro», «Luzes da Cidade» e «Tempos Modernos». «O Circo» fica, geralmente, esquecido. E contudo, como vão verificar, talvez seja este o filme mais «perfeito» desse grande mestre do circo e da pantomina que foi Charles Chaplin, que conhecemos mais com o nome de Charlot.

Porquê o mais perfeito? Por um lado pela forma como está contado, centrando-se quase inteiramente num único espaço, o circo, formando uma unidade de tempo e de lugar, e contando uma história de forma linear, sem interrupções ou desvios para outros temas. Por outro lado, pelo tema, que é o do circo, que ele só voltará a homenagear no famoso número das pulgas amestradas no palco de um teatro de variedades em «Luzes da Ribalta» (mas este filme é já um filme de Chaplin e não de Charlot).

Como sempre, em todos os seus filmes, o trabalho de Chaplin como realizador é de um perfeccionismo quase excessivo. Para tudo poder controlar, e dar o máximo de autenticidade à história, Chaplin criou e manteve durante quase um ano um autêntico circo: tenda, equipamento, vagões, um pequeno zoo, treinadores e tudo o que o constitui, construindo também latas plataformas a fim de poder filmar as cenas de equilibrismo no arame. Aliás, o próprio Chaplin treinou durante meses, o trabalho no arame, assim como a actriz, Madge Kennedy, o fez para o seu papel de acrobata a cavalo.

«O Circo» é, de certo modo, um regresso ao primitivo Charlot, que explora mais o humor e o burlesco do que fizera nas longas-metragens anteriores, «O Garoto de Charlot» e «A Quimera do Ouro». Talvez tenha sido a ausência de situações dramáticas que tenha desiludido alguns dos seus admiradores (as que se encontram, com o dono do circo maltratando a filha, que é a heroína, são breves e estão ali apenas para justificar a entrada de Charlot e o final, que corresponde à clássica conclusão das curtas-metragens de Charlot, com o vagabundo desaparecendo, sozinho, na estrada), o que explica que ele tenha voltado a explorá-las no filme seguinte, «Luzes da Cidade». Mas dentro do género «slapstick» (o cómico burlesco), «O Circo» é um dos seus melhores trabalhos, com números de antologia, desde o do começo, quando, acidentalmente, Charlot vai «revelando» ao público os truques do mágico, até culminar na fabulosa sequência do arame, com Charlot equilibrista, no que é um dos mais entusiasmantes e divertidos momentos de todo o seu cinema. É preciso ver para crer, com Charlot às voltas com os macacos que lhe saltam para cinema enquanto tenta equilibrar-se. Ou ainda a cena na jaula do leão.

Com a sua silhueta inconfundível, Charlot entra no filme, numa feira, junto do circo. Que está cheio de fome vê-se pela forma como tenta dar uma dentada num «cachorro» que um bebé, ao colo da mãe, tem nas mãos. Perseguido pela polícia, Charlot foge pela «casa das fantasias» (outra série de gags irresistíveis), irrompe pelo espectáculo circense e transforma o que era um fiasco num sucesso, acabando contratado pelo dono, apaixonado pela filha deste, que se apaixona, sim, mas por um novo atleta que surge depois, o que prepara para o típico final dos filmes de Charlot.

"Folha da Cinemateca Portuguesa"

Irma La Douce, de Billy Wilder


Realização: Billy Wilder / Argumento: Billy Wilder e I.A.L. Diamond, baseado numa peça de Alexandre Breffort / Fotografia: Joseph LaShelle / Direcção Artística: Alexander Trauner / Décors: Edward G. Boyle e Maurice Barnathan / Guarda-Roupa: Orry Kelly / Efeitos Especiais: Milton Rice / Música: André Prévin, baseada na partitura original de Marguerite Monnot para a peça teatral / Som: Robert Marten / Montagem: Daniel Mandell / Interpretação: SHIRLEY MACLAINE (Irma La Douce), Jack Lemmon (Nestor), Lou Jacobi (Moustache), Bruce Yarnell (Hippolyte), Herschel Bernardi (Inspector Lefevre), Hope Holiday (Lolita), Joan Shawlee (Annie, “a Amazona”), Grace Lee Whitney (Kiki, “a Cossaca”), Tura Santana (Suzette Wong), Ruth e Jane Earl (as gémeas), Harriet Young (Mimi), Paul Dubov (André), Howard McNear (o porteiro do hotel), Cliff Osmond (o sargento da polícia), Dick Lerner (Jojo), Herb Jones (Casablanca Charlie), etc.
Produção: Billy Wilder para a MIRISCH COMPANY, PHALANX e EDWARD L. ALPERSON / Cópia: da CINEMATECA PORTUGUESA-MUSEU DO CINEMA, em 35mm, technicolor, panavision, legendada em português / Duração: 142 minutos / Estreia Mundial: 13 de Julho de 1963 / Estreia em Portugal: Cinema S. Jorge, a 27 de Junho de 1974.

Na história das censuras há, às vezes, casos singulares. Kiss Me Stupid, do mesmo Wilder e imediatamente posterior a Irma La Douce (é obra de 1964) levantou na América a sanha de inúmeras ligas de decência e de associações católicas, aliás com grande espanto e certa indignação de Wilder. Em Portugal, à época, deram-lhe algumas tesouradas, mas deixaram-no passar.

Irma La Douce, que os americanos viram com muito menos protestos, foi imediatamente proibido aqui e só se estreou – com mais de dez anos de atraso – a seguir ao 25 de Abril.

Aparentemente, mas só aparentemente, os censores portugueses teriam mais “razão”. O argumento de Kiss Me Stupid é menos provocador. Mas os americanos tinham as suas razões, e também se compreende que Irma La Douce, superficialmente mais óbvio, tenha escandalizado menos do que o filme com Kim Novak e Dean Martin. Apesar de inúmeros gags, de tantas pêgas e de muitas maldades (a melhor é a que fica guardada para o fim) Irma La Douce é um filme bem pouco cochon e há nele uma “seriedade imperturbável” (como já ao tempo notava Michel Mardore) que não nos dá muito tempo nem espaço para os habituais risinhos ligados às meninas. Até porque todas existem em caricatura, a não ser uma. E essa – Irma, “La Douce” – vai ganhando ao longo do filme tal densidade poética que os aspectos mais rasteiros (ou mais práticos) da sua profissão se esbatem. Mas, se se esbatem, jamais são omitidos e essa é a mais prodigiosa ambiguidade da portentosa mise-en-scène de Wilder e da não menos portentosa criação de SHIRLEY MACLAINE, aqui num dos papéis supremos da sua carreira.

Podia dar muitos exemplos, mas um basta para iluminar todos: a sequência da festa do champanhe, após a primeira visita de Lord X. Vejam SHIRLEY a dançar na mesa do bilhar (os verdes dela e o verde do pano) e vejam-lhe a cara e os olhos até esse mágico grande plano com que a sequência acaba. O que se festeja? Um cliente que em vez de pagar 50 francos pagou 500, a sorte grande. Mas também a plena comunicação – por que não dizer comunhão? – desse dinheiro com a dupla vitória de Jack Lemmon e SHIRLEY: ele sobre os seus ciúmes, ela sobre as reticências dele em se deixar sustentar. Simultaneamente, essa sequência é a mais amoral e a mais moral, a mais materialista e a mais espiritual, a mais cínica e a mais comovente. E um só movimento de câmara abraça tudo, como tantas vezes sucede neste filme de gruas e de imensos travellings (ou travellings combinados com panorâmicas) no espaço mais confinado (uma rua, um café, um hotel e as águas-furtadas de SHIRLEY MACLAINE).

Irma La Douce é um filme que, desde o início, joga na permanente alternância do mais oculto com o mais aberto. Começa com o lugar geométrico de toda a obra, essa Rue Casanova, toda em verde, como o verde de SHIRLEY, reconstituída no prodigioso trabalho de Trauner e servida pela prodigiosa paleta de LaShelle. Como não somos propriamente o futuro Nestor, não temos dúvidas nenhumas onde estamos e para o que estamos. Mas, quando a câmara chega ao cãozinho e a Irma, a personagem, na sua desarmante beleza, suspende-nos. Começa então o genérico e a câmara a subir pela fachada do hotel. E durante todo o genérico (interpenetrando-se com ele) vemos os três clientes de Irma, ouvimos a sacrossanta pergunta e três diferentes histórias de resposta. Three broken fingers and a broken dream. E percebemos muito bem – como o segundo cliente – porque chamam doce a Irma, que en douceur os vai apanhando todos.

Estamos já tão dentro, que é com alguma surpresa que somos puxados para fora, para a mordacidade da voz off (efeito tão habitual em Wilder) e para o paralelo entre a comida e o sexo, leit-motif do filme (nunca Jack Lemmon foi tão porco e tão escabroso como nessas sequências das Halles em que o mais dinheiro aparece directamente associado à mais carne, nas acepções mais escatológicas do termo). Depois, essa mesma voz off nos leva de novo à rua para nos apresentar a todas as personagens, Com relevo para Moustache que devia ter sido Charles Laughton, se a morte o não tem levado (como Irma e Nestor – por incrível que pareça – foram pensados para Elizabeth Taylor e para Richard Burton). Apresentações que servem ainda para nos colocar na “ideia feita” de Paris, na “ideia francesa” de Paris e na “ideia americana” de Paris com o realismo (e irrealismo) linguístico a funcionar como contraponto do irrealismo e do realismo do décor.

E an honest policeman came in, esse super-ingénuo Lemmon que vem desarrumar toda a rua. Desarrumá-la pelas suas obsessões legais que lhe custam o lugar e desarrumá-la pela sua mudança de registo, quando se transforma de pobre pateta em senhor de Irma. O registo é ultra-irónico, sem deixar de ser sério e é progressivamente desconfortável, até na breve observação que se refere à legalidade do ódio e à ilegalidade do amor. E se o apartamento de Irma estava todo aberto, passa, quando Lemmon entra dentro dele, a estar todo fechado, inclusive para nós que, voyeurs indiscretos, somos corridos dele como o cão, ponto de vista que, descobrimo-lo, não deixará de ser o nosso para uma tão verte nuit d’amour. Everybody needs somebody. Disso – razão de tudo – esquecemo-nos na confusão das profissões.

Revirados – e revisitados – todos os décors até à formação do par Lemmon-MACLAINE, surge o imprevisto ciúme. E, para o resolver, recorre, uma vez mais, Wilder, na sua obra, ao tema do “disfarce”, transformando Nestor em Lord X. Um Lord X nascido do chão e que, mesmo sendo Lemmon, tem ciúmes de si próprio, o que o leva a auto-atribuir-se a impotência pela tal explosão na Ponte do Rio Kwai.

E o this is another story de Moustache não é só uma boa ideia de diálogo a preparar o gag final. Efectivamente, sucedem-se histórias que não têm que ver umas com as outras: Jack e SHIRLEY jogam às cartas como em The Apartment (só que aqui o jogo é mais solitário, forçado à paciência); “The Mecs of Paris Protection Association” serve para o fabuloso gag do M.P.P.A. (Motion Picture Producers Association); os subterrâneos de Moustache tem que ver com “outra história” que nunca é esclarecida; a transgressão de Lemmon é o trabalho, como a inocência de SHIRLEY; Jack Lemmon acaba literalmente devorado pelo seu duplo.

E as coisas vão tão longe que já ninguém sabe quem é quem. O único que o julga saber – Moustache – é o único que fica para ver o segundo Lord X, aparição afinal não menos insólita do que fora a reconstituição do seu corpo quando emergiu das águas do Sena em efeito especial inaudito.

Se o ritmo final é o da farsa (impregnado pela lógica da farsa e só sustentado por ela) o caminho que a ela nos levou é o mais discreto e o mais intenso. Como se este filme – e nesse aspecto é o mais lubitschiano da obra de Wilder – fosse inteiramente construído sobre elipses. Precisamente as que elidem a nossa ilusão de termos visto tudo (duas horas de Rua Casanova) quando de facto não vimos nada. Julgamo-nos numa história de pêgas e chulos, de códigos trocados e disfarces óbvios, e precisamente sempre estivemos “noutra história”. E essa nunca nos chegou a ser contada. Para o ser, tinha que começar pelo verde e acabar nos olhos tão azuis de toda a doçura de SHIRLEY MACLAINE. A que se chamava Irma e soube coisas que só as mulheres sabem, aprendidas com um Lord que se chamava X e é e não é Jack Lemmon. E já agora reparem na infinita lógica que faz começar este filme na rua das putas e acabar numa igreja.

JOÃO BÉNARD DA COSTA
"Folha da Cinemateca Portuguesa"

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Ciclo Comédia - 2010/2011

“Irma La Douce”
de Billy Wilder, 1963
15/11 - 141 m

“O Circo”
de Charles Chaplin, 1927
2/12 - 70 m

“Duas Feras”
de Howard Hawks, 1939
10/1 - 102 m

“As Férias do Sr. Hulot”
de Jacques Tati, 1953
8/2 - 96 m

“O Mundo é um Manicómio”
de Frank Capra, 1944
14/3 - 118 m

“Os Dias da Rádio”
de Woody Allen, 1987
27/4 - 85 m

“As Aventuras de Wallace e Gromit”
de Nick Park, 1998
19/5 - 76 m

“Peggy Sue Casou-se”
de Francis Ford Coppola, 1986
6/6 - 103 m

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Tirez Sur Le Pianiste (1960), de François Truffaut


Realização: François Truffaut / Argumento: François Truffaut e Marcel Moussy, baseado no romance policial americano “Down There” de David Goodis / Fotografia: Raoul Coutard / Décors: Jacques Mely / Música: Georges Delerue / Canções: “Framboise” de Bobby Lapointe e “Dialogues d’Amoureux” de Félix Leclerc / Som: Jacques Gallois / Montagem: Cécile Decugis e Claudine Bouché / Interpretação: Charles Aznavour (Charlie Édouard), Marie Dubois (Léna), Albert Rémy (Chico), Nicole Berger (Thérésa), Claude Mansard (Momo), Daniel Boulanger (Ernest), Michèle Mercier (Clarisse), etc.

Produção: Films de la Pléiade / Cópia: da CINEMATECA PORTUGUESA-MUSEU DO CINEMA, 35mm scope, preto e branco, legendada em português / Duração: 85 minutos / Inédito comercialmente em Portugal. Apresentado pela primeira vez no nosso País, no III Festival da Casa da Imprensa, em Maio de 1965, com o título Disparem Sobre o Pianista.

O azar que, ao longo dos 78 minutos que este filme dura, se abate sobre o protagonista, parece ter-se comunicado ao filme do pianista. Vindo após o grande êxito que coroara a primeira longa-metragem de Truffaut – Les 400 Coups - , e antes do sucesso idêntico a esse – Jules et Jim, de 1961 – o opus 2 de Truffaut esteve longe de despertar favores. O filme teve uma carreira discreta, como discreto foi o acolhimento feito pela crítica. Exemplo típico o caso português: Tirez sur le Pianiste foi ante-estreado duas vezes, com um intervalo de dez anos: em 1965 e em 1975, em Festivais. De nenhuma das vezes o distribuidor (que adquirira, titulara e legendara a cópia) passou da potência ao acto (ou seja, da ante-estreia à estreia) e este filme é a única longa-metragem de Truffaut inédita comercialmente entre nós (embora tantas vezes exibida em sessões especiais como esta e tantas vezes mostrada em reprodução televisiva).

O que pode ter contribuído para este relativo “desfavor” de um filme tão importante? Em primeiro lugar, ele veio contrariar a imagem que se formara do realizador após o “confessionalismo” de Les 400 Coups. Sem, de forma alguma, se pretender diminuir esse notável ponto de partida da carreira de Truffaut, pode-se dizer que essa era uma obra que se prestava a ser apreciada por maus motivos: a lágrima fácil que as histórias dos enfants sauvages sempre despertam, a inserção numa tradição do filme francês (em que se viu Vigo revisitado e domesticado), o citado “confessionalismo” (ou se se preferir autobiografismo), a novidade duma abordagem “à flor da pele”, etc.

Tirez sur le Pianiste, aparentemente, nada disto tinha. O argumento do filme era um romance policial americano e Truffaut transpôs o décor do livro (o bairro louche de Skid Row, em Filadélfia) para um Paris só genericamente reconhecível, sem nada do ambiente típico que tanto se insinua na maior parte dos filmes franceses, inclusive nos da Nouvelle Vague (pense-se no quase contemporâneo À Bout de Souffle, de Godard).

Por outro lado, a narração saltava frequentemente de um plano a outro (realismo a irrealismo), “desnorteando” quem nela procurasse um fio lógico. Muito se comentou (e denegriu) o flash-back (a história de Édouard e Thérésa) que, disse-se, parecia vir dum outro filme. Mas esses “saltos” estão presentes ao longo de toda a obra. Para além das sequências finais (na casa dos três irmãos) a que adiante me referirei, pense-se, a título de exemplo, no início do filme: um longo travelling que segue um personagem (Chico) fugindo aos seus perseguidores, no estilo dos “filmes negros” americanos (estilo anunciado no genérico, com as cordas do piano). A certa altura, Chico cai. É ajudado a levantar-se por um desconhecido (que nunca mais aparece na história) e, entre os dois, trava-se um diálogo, em face da situação totalmente despropositado, sobre a vida sentimental e conjugal do “intruso”. Depois, cada um segue o seu caminho, Chico retoma a corrida e Truffaut o travelling. Em duas palavras: o espectador é duplamente defraudado: não tem, perante si, a “intriga policial” típica dos filmes americanos, em que Truffaut se inspira (o cinema, aqui, não é action), nem se pode comprazer no psicologismo realista tão caro aos filmes franceses (as personagens são desenraizadas e actuam, como a “história”, aos solavancos).

Precisamente, essas características (acolhidas com tantas reservas) são as que conferem a Tirez sur le Pianiste o seu maior poder de atracção. Na filmografia de Truffaut, este é o primeiro filme em que o autor tenta combinar as duas “paixões maiores” da sua vida de cinéfilo: o cinema americano, de Hawks, Hitchcock, Preminger ou Fuller com o cinema francês de Renoir e Becker. O que, depois, obras como La Mariée Était en Noir, La Sirène du Mississipi ou La Chambre Verte (para só citar filmes maiores) iriam desenvolver, acha-se aqui configurado pela primeira vez, numa procura de fusão de dois estilos que dão a este filme muito do seu apaixonante experimentalismo.

Num filme em que abundam as citações cinematográficas (para não falar das musicais, literárias e das cinéfilas como no plano com o número dos “Cahiers”), Truffaut procede como o seu “pianista”: retém tudo o que é bonito (“J’aime tout ce qui est beau”).

Filme construído sobre um sentimento, a timidez (como bem notou Pierre Kast), Tirez sur le Pianiste é capaz das maiores audácias formais desde a sequência do duelo (vinda do M. Lange de Renoir e do Casque d’Or de Becker) até ao espantoso tratamento do passeio nocturno de Charlie-Édouard (a brincadeira com o nome teria a sua devida posteridade no Pierrot Le Fou de Godard) com Léna (“parce qu’Elena”).

Citei estes exemplos como alguns dos melhores momentos deste filme. Mas o máximo de intervenção e audácia reserva-nos Truffaut para o fim. Retomando La Nuit du Carrefour de Renoir, Truffaut (que nunca “explicou” os irmãos) insere-os num décor mítico que trás subitamente à memória os mais tenebrosos dos contos de Grimm da nossa infância, com a mesma contrapartida de terror e atracção. O “realismo” torna-se fantástico, os bandidos transformam-se em ogres e a “carne humana” tem que ser devorada.

É então que surge a sequência final (a espantosa morte de Léna na neve) em que, retomando o grande cinema lírico de Hollywood (de Griffith a Borzage), Truffaut transforma esta história de sentimentos recalcados num poema de paixões soltas e confere a Marie Dubois, também (veja-se o assombroso plano do escorregar dela na neve) a força mítica que anima essa sequência.

Ao encontrar-se com os grandes espaços, este filme confinado e rarefeito (visto, tantas vezes, através de vidros embaciados) transpõe as notas do pianista do cabaret e das canções drôles cantadas antes para os acordes da grande música também ouvida no filme e que Charlie, para seu mal ou seu bem, não soube sustentar.

JOÃO BÉNARD DA COSTA
"Folha da Cinemateca Portuguesa"