Realização: John Ford / Argumento: Nunnally Johnson, baseado no romance homónimo de John Steinbeck / Fotografia: Gregg Toland / Música: Alfred Newman, com canções de Dan Borzage / Montagem: Robert Simpson / Cenários: Thomas Little / Direcção Artística: Richard Day e Mark Lee Kirk / Interpretação: Henry Fonda (Tom Joad), Jane Darwell (a mãe), Russell Simpson (o pai), John Carradine (Casey), Charles Grapewin (o avô), Zeffie Tilbury (a avó) , Frank Sully (Noah), Dorris Bowdon (Rosasharn), O. Z. Whitehead (Al), John Qualen (Muley), Eddie Quillan (Connie), Ward Bond (o polícia), Frank Dorien (Tio John), Darryl Hiekmann (Winfields), Shirley Mills (Ruth Joad), Grant Mitchell (o guarda), etc.
Produção: 20th Century Fox / Produtor: Darryl F. Zanuck e Nunnally Johnson / Cópia: da CIN EMATECA PORTUGUESA-MUSEU DO CIN EMA, 35mm, preto e branco, com legendas em português / Duração: 129 minutos / Estreia Mundial: EUA, 15 de Março de 1940 / Inédito comercialmente em Portugal (exibido, pela primeira vez, em sessão particular na Embaixada dos Estados Unidos em Lisboa, a 10 de Janeiro de 1973, e em sessão pública, no Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian, a 4 de Outubro de 1979).
Num artigo publicado em 1976 na Revista Colóquio-Letras, sob o título “Literatura e Política - Possibilidades e Limites”, o autor (Walter Jens) conta a história dum emigrante russo (antigo cossaco) que, em 1926, após ter visto na América O Couraçado Potemkine de Eisenstein, se foi entregar às autoridades, exigindo a sua própria condenação, pois descobrira, ao ver o filme, que “era um criminoso” porque o seu regimento participara no massacre de Odessa.
Como escreve Jens “a célebre sequência das escadarias abrira os olhos àquele homem. Agora, de repente, ele sabia o que, na realidade, se tinha passado em Odessa; nesse momento em que - esclarecido por uma obra de arte em cuja montagem a realidade era retratada - subitamente começava a compreender a dupla perspectiva dum acontecimento que há muito caíra no olvido” (os sucessos narrados no filme haviam tido lugar vinte e um anos antes, isto é, em 1905).
Não interessa saber se esta história satisfaria ou não Eisenstein. O que é certo é que ela perfaz a aspiração mais profunda de quantos tentam fazer obras de arte interventoras: produzir na consciência individual (e na consciência social) uma modificação que altere profundamente uma visão do mundo. Jens sustenta - e penso que com razão - que tal aspiração é ilusória e que, “aqui e agora”, nem o filme, “nem as artes no seu conjunto”, “mudaram coisa nenhuma”, a esse plano. É uma vexata quaestio que se reacendeu, quando da estreia de As Vinhas da Ira (nas acesas polémicas que opuseram os detractores do filme aos seus defensores) e que se pode reacender a cada nova visão. Porque poucos filmes terão o impacto moral e social deste, porque poucos filmes serão tão imediatamente actuantes ao nível da modificação acima referida. Dificilmente, o mais insensível dos espectadores ficará “frio” perante sequências como a da partida de Tom e o seu “discurso”: “I’ll be there” ou o não menos famoso “discurso” da mãe: “We’re the people”.
O mais estranho é que isto (ou seja, essa contagiante comunicação e revolta) tenha acontecido com uma obra de John Ford, que pode ser acusado de tudo menos de revolucionário. O que o realismo socialista e o neo-realismo, em obediência a postulados teóricos, tanto procuraram e só muito raramente conseguiram (a intervenção social e política através duma obra de arte) aconteceu no filme de Ford, que estava longe de seguir tais postulados e nunca perfilhou doutrinas de engagement.
O “milagre” das Vinhas da Ira, como o de Young Mr. Lincoln do mesmo Ford e com o mesmo Fonda, no ano anterior, tem a explicação numa convicção que não é “colada” por imposições propagandísticas, mas provém duma certeza de nível muito mais profundo. Ford não “cantou” Lincoln ou a família Joad para servir os interesses duma política (embora seja outra questão saber se efectivamente as serviu) mas porque moralmente o seu credo se identificava totalmente com as ideias expressas nessas duas obras. São filmes sem dúvidas nem manhas - actos de fé e esperança - filmes de um crente que nenhuma dúvida, oportunismo ou servilismo, atravessa. Realizador e “mensagem” identificam-se plenamente e, por isso, o olhar é tão límpido, a beleza tamanha e a força tão pura. Várias décadas depois, As Vinhas da Ira (o filme, muito mais que o livro de Steinbeck, que já se lê com outra distância) continua a manter a mesma eficácia. Porque é um filme de inabaláveis certezas e um filme de um grande artista. Quando as duas coisas se reúnem, necessariamente tudo está certo.
Sabemos que não se tentou impingir gato por lebre: os pequenos camponeses do filme não são (como no neo-realismo italiano) reais pequeno-camponeses, mas actores profissionais tão célebres como Fonda, Darwell ou Carradine; não é por acaso que o responsável pelo único trabalho onde os Joad são bem tratados, tanto lembra fisicamente o Presidente Roosevelt (imagem paternal, New Deal e new look); não é irrelevante que o filme comece com um homem sozinho em contra-luz, já que assim ficam bem sublinhadas a revolta e injustiça individuais, a que Fonda deu, no citado “discurso”, a força da primeira pessoa do singular; não é gratuito que nos seja proposta a identificação com uma família exemplar e que os “maus” sejam tão claramente demarcados dos “bons”.
Mas nada disto atinge o cerne da obra, exactamente porque nada disto é escamoteado e porque esses são os valores e as ideias em que John Ford acredita e que, por um singular encontro histórico, se reuniram em 1940 aos valores e aos ideais da sociedade e do país em que viveu. É por isso que Darwell, Fonda e Carradine podem convencer que “eles são o povo”, é por isso que o movimento de esperança que o filme implica se sobrepõe a quaisquer outras considerações sobre realidades menos amáveis, ou de leitura menos transparente.
Como tenho escrito a propósito de outros filmes de Ford, talvez seja preciso recuar à pintura holandesa do Séc. XVII para encontrar uma tão funda adequação entre os valores duma sociedade e a representação dessa sociedade, entre o olhar dum artista que a simboliza e o olhar dos homens e mulheres que, simbolizando-a também, nos foram retratados.
A imensa beleza deste filme conduzir-nos-ia a análises quase inesgotáveis, desde a fotografia (não resisto a citar a entrada de Fonda em casa, com a iluminação à luz da vela) aos actores. Mas este filme convida mais ao silêncio que à prolixidade. Daí que me limite a apontar, entre tantos momentos de antologia, um só que resume tudo quanto até aqui disse: o plano da morte do avô, quando este agarra com a mão direita a terra do solo em que tinha nascido, a pousa sobre o peito, muito lentamente, e, depois, deixa cair devagar o braço, morrendo em total consonância e em total identificação, na morte mais panteísta da história do cinema.
Pode discutir-se As Vinha da Ira - segundo filme de Ford a obter o oscar da melhor realização - é ou não o seu melhor filme. Mas podemos estar seguros de que é certamente um dos pontos mais altos dela. Filme só visto em Portugal a partir da década de 70, a expectativa com que foi aguardado jamais foi frustrada.
João Bénard da Costa
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