terça-feira, 24 de maio de 2011

As Férias do Senhor Hulot, de Jacques Tati

Realização: Jacques Tati / Argumento: Jacques Tati, Henri Marquet / Fotografia: J. Mercanton, J. Mouselle / Direcção Artística: Henri Schmidtt / Música: Alain Romans / Intérpretes: Jaques Tati (Mr. Hulot), Nathalie Pascaud (Martine), Michele Rolla (tia), Valentine Camay (criada velha), Louis Perrault (barqueiro), André Dubois (Coronel), Lucien Frégis (dono do Hotel), Raymond Carl (criado).

Produção: Cady Films - Discina / Cópia: da Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema, em 35mm, preto e branco, versão original legendada em português / Duração: 86 minutos / Estreia Mundial: Paris, 25 de Fevereiro de 1953 / Estreia em Portugal: Tivoli, em 22 de Fevereiro de 1954.

Numa das mais interessantes (e ditirâmbicas) análises sobre esta obra prima de Jacques Tati, incluída no “International Dictionary of Films ans Filmakers”, o autor, Dave Kehr, chama a Les Vacances de Monsieur Hulot o Sacre du Printemps do cinema, e aponta-o como “um dos filmes mais radicais jamais feitos”. E acrescenta que “sem Les Vacances não teria havido Jean-Luc Godard, nem Jean-Marie Straub, nem Marguerite Duras - nem cinema moderno”. O ponto de partida para esta análise tem a ver com a forma como Tati encena o seu filme fazendo, como Kehr sugere, tábua rasa das convenções dominantes da linguagem cinematográfica, como se Griffith nunca tivesse existido.
Há bastante pertinência nas afirmações de Kehr que, no fim de contas se poderiam aplicar a toda a obra de Tati, e, deste ponto de vista, as suas curtas metragens, Soigne ton Gauche, L' École des Facteurs e Cours du Soir, são particularmente sugestivas com a sua construção que lembra os primitivos burlescos, menos os americanos do que os europeus que se fizeram antes da Primeira Grande Guerra. Mesmo nas longas metragens, o que distingue Tati dos restantes realizadores do seu tempo, cómicos ou não, e o que provoca no espectador um efeito de estranheza, é a radical diferença da “narrativa” dos seus filmes em comparação com os outros seus contemporâneos. Trata-se não só de uma recusa de efeitos fortes nos argumentos, como também de qualquer efeito de manipulação através da montagem. As coisas são o que são e como estão no plano sem mais nem menos. O exemplo que Kehr dá em Les Vacances pode ser encontrado também em qualquer os outros filmes (a praça e o jantar em Playtime, por exemplo). Trata-se da sequência da estação de comboios, ao começo, quando os veraneantes estão de abalada para férias. Um engano do anunciante faz as pessoas correrem de um apeadeiro para o outro. Toda a cena é mostrada de um único ângulo, numa ligeira plongée por cima da estação. As pessoas passam pelas passagens subterrâneas num confuso vai-vem sem que a cena tenha qualquer corte para sublinhar qualquer comportamento ou incidente. É uma posição neutra, que não impõe nenhum olhar particular, a não ser o da câmara nesse mesmo momento, da mesma forma como os primitivos cineastas captavam as imagens. O humor, neste caso, nasce do movimento interno do plano, e não do pormenor pitoresco, do insert significativo, que Griffith e outros, introduziram para dar uma maior tensão dramática (os grandes planos cortando os de conjunto em The Birth of a Nation, por exemplo). É a mesma regra que seguem os autores citados por Kehr, mas também Manoel de Oliveira nas suas obras mais radicais em questão de linguagem, Amor de Perdição, Benilde e Francisca.

Esta maneira de filmar é constante em toda a obra de Tati, mas em Les Vacances de Monsieur Hulot ela adquire uma função narrativa mais significativa do que em qualquer outro, de certo modo porque estabelece as bases do seu trabalho futuro, em particular com o tratamento do personagem. Porque se “o estilo faz o homem”, faz também a personagem. Hulot distingue-se de todas as outras figuras cómicas da história do cinema por um certo “apagamento”. É, no fim de contas, a montagem que “impõe” este ou aquele personagem ao “impor” um olhar determinado sobre ele. Ao evitar esse método, ao utilizar quase sempre o plano de conjunto para mostrar os gags e as situações, Tati “apaga” o personagem, e embora a atenção do espectador se concentre nele há mil e um pormenores à volta que constantemente apelam aos nossos sentidos. Repare-se nas sequências da praia (o velho casal que passa e cujo gag é uma situação corriqueira: deitar fora as conchas), e principalmente a belíssima sequência do baile de máscaras com Hulot reduzido apenas a um dos vários participantes. Mesmo quando está só no plano, raramente há um corte para por em destaque este ou aquele gesto (exemplar a cena da pintura do barco com a lata de tinta levada pelas ondas de um lado para o outro). Este “esbatimento”, esta redução a um vulto na paisagem terá como consequência lógica o progressivo “desaparecimento” de Hulot: em Playtime ele não é já mais do que um entre muitos outros peões. Mas isto resulta também desse olhar cada vez mais neutro e distante, onde se quis ver uma certa frieza e “avareza” narrativa, mas que resulta dessa opção radical para o seu tempo de não querer impor um olhar estranho ao espectador, de respeito pela sua inteligência e sensibilidade. Tati retira dos planos dos seus filmes tudo o que é supérfluo. A sua câmara abre-se, com uma janela sobre uma paisagem determinada, povoada pelos mais variados tipos que têm em comum um ar mais ou menos vulgar. O humor nasce de algo que se desloca nessa harmonia, por vezes de forma imperceptível, aqueles gestos quotidianos que à força de os repetirmos perderam o sentido e não damos por eles. Gestos e sons. Se a modernidade do cinema de Tati passa pelo seu aspecto “primitivo”, outro sinal dessa modernidade é a forma como o som é trabalhado, perturba o conjunto ou nele se integra. Quer os ruídos, quer os diálogos se destacam da mesma forma que os referidos gestos: banais os primeiros, mas adquirindo um sentido novo (o barulho do vento que abala os rituais dos veraneantes quando a porta da sala de espera se abre), e os segundos limitados ao essencial, e, como em qualquer conversa, feitos de comentários perdidos, apanhando-se um ou outro fragmento. Se o cinema moderno nasceu de muitas experiências e filmes, Les Vacances de Monsieur Hulot, de Tati e Viaggio in Italia, de Rossellini, são as obras que definitivamente lançam os seus alicerces.

Manuel Cintra Ferreira
Folha da Cinemateca Portuguesa

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