domingo, 12 de abril de 2009

24 de Março de 2009

ANIKI-BÓBÓ / 1942
Um filme de Manoel de Oliveira

Realização, Argumento, Planificação e Diálogos: Manoel de Oliveira, baseado no conto “Meninos Milionários”, de Rodrigues de Freitas

Poema: de Alberto Serpa / Fotografia: António Mendes / Assistentes de Fotografia: Perdigão Queiroga e Cândido Silva / Cenários: José Porto / Caracterização: António Vilar / Som: Luís Sousa Santos / Assistente de Som: Francisco Mesquita e Mário Malveira / Música: Jaime Silva Filho / Assistente Geral: Manuel Guimarães / Fotógrafo de Cena: João Martins / Montagem: Vieira de Sousa / Intérpretes: Nascimento Fernandes (lojista), Fernanda Matos (Teresinha), Horácio Silva (Carlitos), António Santos (Eduardinho), António Morais Soares (Pistarim), Feliciano David (Pompa), Manuel Sousa (o “Filósofo”), António Pereira (o “Batatinhas”), Américo Botelho (o “Estrelas”), Rafael Mota (Rafael), Vital dos Santos (Professor), Manuel de Azevedo (cantor de rua).

Produtor: António Lopes Ribeiro / Assistente de Produção: Fernando Garcia / Estúdios: Tóbis Portuguesa / Laboratório: Lisboa Filme / Cópia: da CINEMATECA PORTUGUESA-MUSEU DO CINEMA, em 35mm, preto e branco / Duração: 68 minutos / Estreia: Eden, 18 de Dezembro de 1942.

Versão restaurada pela Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema com o apoio do Projecto Lumière (Programa Media da União Europeia).


“Anikibébé. Anikibóbó. Passarinho. Tótó.
Berimbau. Cavaquinho. Salomão. Sacristão.
Tu és polícia. Tu és ladrão”.


Em 1942, surgiu para Manoel de Oliveira a oportunidade, na pessoa de António Lopes Ribeiro (então concretizando o sonho de uma produção contínua), de realizar Aniki-Bóbó, uma história poética com miúdos, baseada no conto de Rodrigues de Freitas “Meninos Milionários”.

A história é singela, real, simples, ambientada no mesmo cenário de Douro, Faina Fluvial: a zona ribeirinha do Porto e Gaia. Dois garotos, o Carlos e o Eduardo, gostam da mesma miúda, a Teresinha. Um é audacioso, brigão, atrevido; o outro é tímido, bom, sossegado. A rivalidade vai-se acentuando e, um dia, para agradar à sua (namorada), Carlos rouba uma boneca. Teresinha sente-se inclinada para ele até que um dia, numa inocente brincadeira, Eduardo escorrega por um talude e cai ao lado de um comboio que passa. Todos pensam que Carlos o empurrou e todos passam a afastar-se dele, enquanto Eduardo sofre numa cama de hospital. Carlos pensa fugir num barco ancorado no cais de Massarelos mas tudo se esclarece por intervenção do dono da “Loja das Tentações” que vira o acidente e que, no final tira todas as suspeitas de cima do Carlos. E os garotos poderão de novo jogar aos polícias e ladrões, ao jogo do Aniki-Bóbó...

Reflexos do mundo adulto - e uma mensagem de paz e compreensão dita por Nascimento Fernandes, o homem da “Loja das Tentações” (um prodígio de interpretação) a todos os garotos perdidos em rivalidades inúteis: “Vocês são pequenos. Não conhecem a vida. Barulhos, zangas, não vale a pena!” Na verdade, pode perguntar-se qual é o sentido geral deste filme, para lá da deliciosa história dos jogos infantis. A nós, pareceu-nos um apelo ao bom entendimento, não ideal, programático, mas sentido, verdadeiro, dentro de reais normas de convivência. Porque aconteceu o desastre de Eduardo? Por terem faltado à escola, por terem fugido à máxima simples que se inscreve na sacola de sarja do Carlitos: “Segue sempre pelo bom caminho”? Sabido que Manoel de Oliveira pretendeu neste filme reflectir os “jogos dos adultos” nos jogos das crianças, é fácil tirar conclusões. Nessa altura, as fronteiras do homem, haviam-no constrangido: “não esqueçamos” diz o autor - que Aniki-Bóbó, embora inspirado no conto “Meninos Milionários”, do Dr. Rodrigues de Freitas, foi imaginado e realizado durante a guerra, em 1941-42.

Formalmente, Aniki-Bóbó insere-se no melhor filão do cinema português, que é o do lirismo documental, aliado a um evidente realismo de ambientação. O Porto de Manoel de Oliveira é das melhores coisas que o cinema nacional nos deu, um autêntico cenário cinematográfico, escolhidos sempre os locais com mais relevo cinematográfico. Os actores, excepção para Nascimento Fernandes e Vital dos Santos, são garotos e gente ribeirinha. Que mais será preciso dizer para concluir que Aniki-Bóbó é um autêntico percursor (como o haviam sido por exemplo, Maria do Mar e A Canção da Terra) daquele realismo mágico a que pertencem tantas e excelentes obras do cinema italiano dos finais dos anos 40, desde Dois Dias Fora da Vida a Sonhando pelo Caminho, desde Bom-Dia Elefante a Milagre de Milão, passando por Manhã de Páscoa e mesmo por Sciuscià?

Manoel de Oliveira revelou-se aqui um realizador de excepcionais dotes fílmicos. Toda a sua fita é eminentemente cinematográfica, compreendida sempre em termos visuais. E, algumas vezes, requintes fotográficos de António Mendes um operador a que poderemos quase atribuir co-autoria, dão-lhe o nível fora do comum. Lembremos o pesadelo de Carlitos, transmitido na melhor tradição expressionista, lembremos a sequência nocturna dos polícias e ladrões, lembremos a sequência “filosófica” (quiçá um pouco literária) dos garotos à noite, pensando no Eduardo, lembremos ainda o estupendo tom fotográfico da cena em que Carlitos quer fugir no barco.

E não faltam alguns daqueles pormenores que definem um director entendido em imagens: o desenho de Teresinha que Carlitos escreve na ardósia, em raccord interior com o seu pensamento e o “papagaio” desfeito no chão quando Eduardo sofre o acidente, por exemplo. Ou o gato na janela e o mapa quando Carlitos sonha, durante o castigo do “Pistarim” na escola. Ou o mergulho do Eduardito do alto do guindaste. Ou o passeio dos meninos bem comportados a caminho da escola. Tudo momentos visuais de seguro efeito narrativo, que não emperram a acção, sempre dependente (e bem) do elemento principal, desprezando os tais elementos secundários que costumam “emperrar” as fitas portuguesas.

Esclareça-se ainda que Aniki-Bóbó, filme essencialmente poético, não deve ser considerado “filme para crianças”, embora seja protagonizado por elas. Julgo residir aqui um dos equívocos da crítica portuguesa quando da sua estreia, pensando alguns críticos que havia ciladas à inocência das crianças, quando não foi essa, com certeza, a intenção do autor. Trata-se de uma visão adulta do mundo infantil e não de uma história adaptada à mentalidade infantil. Como Brincadeiras Proibidas, por exemplo.
Luís de Pina
"Folha da Cinemateca Portuguesa"

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